Comecemos pelo concurso interno português das canções candidatas à representação do nosso país. De todas elas só duas me chamaram verdadeiramente a atenção.
A primeira música, composta pela Luísa Sobral e interpretada pelo "excêntrico" (?) Salvador Sobral, "Amar pelos Dois", não é uma música festivaleira. É antes uma balada romantico-melancólica, com arranjos de bossa nova.
Se um dia alguém
Perguntar por mim
Diz que vivi
Para te amar
Antes de ti
Só existi
Cansado e sem nada p’ra dar
Meu bem
Ouve as minhas preces
Peço que regresses
Que me voltes a querer
Eu sei
Que não se ama sozinho
Talvez devagarinho
Possas voltar a aprender
Se o teu coração
Não quiser ceder
Não sentir paixão
Não quiser sofrer
Sem fazer planos
Do que virá depois
O meu coração
Pode amar pelos dois
É uma canção simples, efetiva, com uma mensagem também ela simples e efetiva de um amor, possivelmente não correspondido, que alguém se dispõe a manter e a sofrer só para que ele não se vá.
Na conferência de imprensa que ocorreu depois do festival, um jornalista conotado com uma revista LGBT fez notar que a música "Amar pelos Dois" não tem pronomes de género, podendo ser cantada por um homem ou por uma mulher, dirigindo-se a um homem ou uma mulher. Luísa Sobral disse que isso não foi propositado. Disse também que quando escreveu e compôs a música para o seu irmão fez de forma a que ela também a pudesse cantar e, talvez por isso, o género não apareça.
Outra que tem uma melodia interessante e uma voz ainda mais interessante (a da cantora Kika Cardoso) é "Nova Glória" dos Viva La Diva, composta por Nuno Gonçalves. Embora original, os contra-tenores (Luís Peças e João Paulo Ferreira) não me convenceram. A parte final, excessivamente gritada, poderia ser melhorada.
Sou e o que fui passou
delirei com amor
Mil memórias
Ser ou não quis parecer
algo por dizer,uma história
Nova Glória e sonhos nunca cumpridos, nunca ouvidos.
Quero mais, pois dá-me
Amor,
tão longe a dor,
um brinde à cor,
vejo ao longe o mar,
juro-me não falhar…
Sim, decidir por ti
quis seguir, senti a vitória.
Quero mais pois dá-me
Refrão
Grito intenso
um comum bom senso
rezo o mesmo terço, quero mais
pois dá-me
Refrão
Para além da música portuguesa interpretada por Salvador Sobral, poucas se destacaram na grande final do Festival Eurovisão.
Uma delas é a música italiana, cantada por Francesco Gabbani, intitulada "Occidentali's Karma". Trata-se de uma música "festivaleira", moderna, bem feita, bem interpretada e bem letrada. Faz-me apenas confusão que "quase todos" os italianos cantem com aquela voz áspera... assim de repente, a voz de Francesco Gabbani faz lembrar Eros Ramazzotti mas poderia também dizer Toto Cutugno. Na letra que a seguir transcrevo, as partes a itálico não fazem parte da versão Festival Eurovisão da música. Compreende-se que a primeira parte obliterada destina-se a encurtar um andamento de igual cadência melódica e a segunda talvez tenha sido rasurada pela referência à marca Chanel.
Essere o dover essere
Il dubbio amletico
Contemporaneo come l’uomo del neolitico
Nella tua gabbia 2×3 mettiti comodo
Intellettuali nei caffè
Internettologi
Soci onorari al gruppo dei selfisti anonimi
L’intelligenza è démodé
Risposte facili
Dilemmi inutili
A A A cercasi (cerca, sì)
storie dal gran finale,
Sperasi (spera, sì)
Comunque vada, panta rhei*
And “Singing in the rain”
Lezioni di Nirvana
C’è il Buddha in fila indiana
Per tutti un’ora d’aria, di gloria (ale!)
La folla grida un mantra
L’evoluzione inciampa
La scimmia nuda balla
Occidentali’s karma
Occidentali’s karma
La scimmia nuda balla
Occidentali’s karma
Piovono gocce di Chanel
Su corpi asettici
Mettiti in salvo dall’odore dei tuoi simili
Tutti tuttologi col web
Coca dei popoli
Oppio dei poveri
A A A cercasi (cerca sì)
umanità virtuale
Sex appeal (sex appeal)
Comunque vada, panta rhei*
And “Singing in the rain”
Refrão
Quando la vita si distrae
Cadono gli uomini
Occidentali’s karma
Occidentali’s karma
La scimmia si rialza
Namaste**, allez***!
Refrão
Omm.
Vejamos agora a tradução para português tendo em conta o seguinte:
* "Panta rhei" é um termo grego, πάντα ῥεῖ no original arcaico, que significa "tudo flui", possivelmente proferida por Heráclito.
** "Namaste" é uma palavra hindu, नमस्ते no original, que significa "olá".
*** "Allez" é uma palavra francesa que significa "vamos".
Ser ou não ser
A dúvida de Hamlet
Contemporâneo como o Homem do Neolítico
Mantém-te confortável na tua gaiola 2x3
Intelectuais nos cafés
A lógica da Internet
Sócios honorários do clube dos egoístas anónimos
A inteligência está fora de moda
Respostas fáceis
Dilemas inúteis
Procuram-se grandes finais
Por eles se espera
Seja como for, tudo flui
E "Singing in the Rain"
Lições do Nirvana
É o Buda em fila indiana
Para todos uma hora de divertimento, de glória
O povo grita um mantra
A evolução tropeça
O macaco nu dança
É o karma ocidental
Gotas de Chanel caem
Nos corpos asséticos
Salva-te do cheiro dos teus semelhantes
Todos sabem tudo com a Web
Cocaína das massas
Ópio dos pobres
Procura-se
A humanidade virtual
Sex appeal
Seja como for, tudo flui
E "Serenata à Chuva"
Quando a vida se distrai
O Homem cai
É o karma ocidental
O macaco volta a ficar de pé
Olá, vamos!
É uma crítica aberta à sociedade atual, com toda a sua superficialidade, egocentrismo, narcisismo, imediatismo e centrada na Internet.
A referência ao Macaco Nu é invocativa do livro homónimo de Desmond Morris, The Naked Ape: A Zoologist's Study of the Human Animal que olha para a espécie humana e compara-a com os outros animais.
A mensagem que transparece da música é que com o estado atual da sociedade, o Homem "afunda-se" para que o seu lado "Macaco", com todo o comportamento não humano associado, se erga. Ao contrário de muitas críticas que vi, a presença do macaco em palco não é somente um elemento alegórico e despropositado mas antes a invocação desta mensagem.
Depois da canonização dos pastorinhos em Portugal pelo Papa Francisco e o Tetra-Campeonato do Benfica, a vitória do Salvador Sobral, embora justa, foi inesperada. Pelos vistos o Festival da Eurovisão e o público europeu ainda têm salvação. Talvez nestas lides o macaco ainda não ficou de pé e o pensamento do macaco nu ainda governa.